sexta-feira, 8 de abril de 2011

Um sabotador mais do que íntimo



Enfrento um inimigo vil todos os dias.
Eu não consigo evitá-lo, por mais que eu tente.
Antes de falar desse meu oponente, recapitular minha rotina é necessário. Credo, soou como o Yoda ...
Nas manhãs de segunda, terça, quarta, quinta e sexta-feira, eu ligo meu carro, engato marcha a ré ( opa ! ), depois coloco alegremente na posição D do câmbio automático e viro o pimpão para a direita.
Normalmente, nosso embate começa assim.
As exceções desses dias de luta são as ocasiões onde meu destino final é Viracopos ou os feriados. Nos feriados, eu religiosamente opto por vagabundar e não faço aquela operação ali, da frase acima.
Bem, o carro anda 200 metros e eu continuo sentado, sem fazer p. de esforço físico nenhum. Pensando melhor, até que faço : normalmente eu aperto o botão que liga o rádio, para escutar a rádio CBN. Pode ser classificado como esforço físico. Confesso que eu também tinha certa preguiça de estender o braço e fazer isso, mas perdi o controle remoto do CD Player e agora, se eu quiser ouvir o Heródoto Barbeiro, sou obrigado. Injusto.
Eventualmente, eu encontro com um dos motoristas da loja de materiais de construção aqui do bairro, manobrando um dos caminhões da empresa.
Ele não é exatamente meu amigo, mas não tenho como esquecer dele porque 17 anos atrás, numa quermesse escolar, apresentei-lhe uma menina que hoje é sua esposa.
Deduzo que eles são felizes depois de todos esses anos, porque ele acena sempre que vê meu carro.
Aceno algumas vezes, em outras faço uma expressão blasé e continuo em frente.
E minha saga como zebra continua.
Entro alerta na Rodovia dos Bandeirantes, com meu inimigo espreitando.
Já percebi que ele começa sua caçada diária sempre depois das 7 horas e 30 minutos da manhã. Estudei meu inimigo e sei que seus pontos fixos de ataque são no KM 86, 61 e 16.
Estou salvo dele no KM 16, porque normalmente utilizo a saída 24.
O número cabalístico da minha terra natal também é a rota mais rápida para o escritório da empresa onde eu trabalho. Coincidências.
Nos KMs 86 e 61, eu uso táticas evasivas rápidas e há 2 anos não sou ferido nessa região. Um dia após o outro, nesses dois anos.
Ser caça lhe deixa muito mais esperto. Não causa só traumas.
Já percebi, por exemplo, que há uma plaquinha infâme na saída do KM 88. Essa saída conduz para minha cidade natal ( não vou falar o nome aqui, porque não tenho dinheiro para pagar advogados em eventuais processos movidos contra minha pessoa ) é mais fofinha e diz : CIRCUITO DAS FRUTAS. E com uma seta indicando para a saída que leva até nossa fresca cidade.
Queria saber quem autoriza isso, reforçando a fama que faz de nós, representantes viajantes da nossa amada cidade-princesa, o alvo das piadas nas jornadas épicas por todo o Brasil.
Há também dois banheiros químicos na região do KM 70, que está em obras.
Essa visão me traz um certo medo, porque quando estive na Bélgica e fui usar um banheiro químico na rua, umas pessoas me balançaram dentro dele e tive dificuldades de sair, porque essas mesmas pessoas giraram o cubículo e deixaram a porta emperrada por umas latas de lixo que estavam na rua. Não uso mais, desde então.
Viajo mais 6 minutos e meio e passo pelo parque aquático. E passo pelo outlet. E passo por baixo do shopping construido acima da rodovia.
Na margem direita e 8kms adiante, todas as manhãs há duas vaquinhas ruminando, próximas da cerca que marca o limite do sítio onde elas vivem.
Essas bichinhas são especiais, porque denunciam que meu algoz costuma acampar por ali.
E assim, 35 minutos depois de tomar o inicopiável ( existe ? ) café da minha mãe, avisto a Kombi branca que mobiliza meu oponente, sacanamente parada na margem direita da rodovia, e estacionada atrás de uma placa de sinalização.
Travo contato visual com meu predador e seu colete laranja, cravejado de um material conhecido popularmente como "olho de gato" ( mas isso não é para destacar o sujeito durante o período noturno ? Tão inteligente quanto usar uma Kombi ... ) e noto que ele está calibrando sua armadilha.
Reduzo a velocidade para abaixo dos 120km horários permitidos por ali.
E passo salvo, sorrindo para sua infeliz postura agachada, "cofrinho" peludo aparente e tudo.
Olho pelo retrovisor e noto seu semblante.
Seu rosto está esperançoso e certo de sua invísivel camuflagem causada pelo indelével contraste entre o colete laranja com olho de gato e a grama verde do canteiro da rodovia, com o suporte de seu veículo para as ações táticas móveis rápidas.
No caso, a Kombi branca parada do outro lado da pista, escondidinha por uma placa de trânsito dois metros menor que o comprimento da dita cuja.
Ninguém vai notar, pensa ele.
Sigo em paz e o sol brilha mais forte. Venci meu inimigo, penso.
Parecia bom, mas o dia fica ainda mais perfeito.
Encontro alguns cones delimitando uma faixa interditada e reacendo minha tara secreta, que é derrubar em sequência esses profusos objetos laranjinhas.
Esse pensamento me causa uma profunda satisfação, mas eu nunca levei esse plano até o fim. Tenho medo de ser punido pela polícia rodoviária.
Faço as contas e percebo que posso acelerar um pouquinho e chegar 3 minutos e meio antes do programado no escritório.
Acelero e chego 4 minutos antes.
Não tem ninguém lá ainda, e eu ligo minha estação de trabalho. Tomo uma decisão importante e acesso o tradutor daquele site famoso, ferramenta já citada antes aqui por mim.
Quero resolver um mistério para o qual fui empurrado, antes que outras pessoas cheguem para trabalhar e antes que meu próprio horário oficial de trabalho comece.
O mistério envolve digitar äääääääääääääää na visor e teclar a opção de tradução : do ALEMÃO para PORTUGUÊS.
Faço isso e dou risada sozinho, com a estupidez da saída causada por esse input, que agora já é uma palavra da língua portuguesa.
Não aparece nada muito interessante ( façam, se quiserem saber o que é ), mas mesmo assim dou risada, pensando na frustração do peludo de cofre.
Mantenho o äääääääääääääää escrito e mudo os idiomas : de ALEMÃO para INGLÊS, de ALEMÃO para CHINÊS e a mesma palavra se repete. Fico curioso com a grafia chinesa para a palavra que aparece e pressiono a pronúncia. Mais risadas, com o som dito pela máquina. Gastei 3 minutos nessa bobagem toda.
Estou feliz. O dia começou bem. Está tudo reluzindo. Vou abrir meus emails.
A primeira mensagem acaba com tudo. Tudo se vai.
Vou omitir o nome do remetente, mas a mensagem temidamente diz em seu subject ( essa ainda não virou portuguesa ) : INDICAÇÃO DE CONDUTOR.
Sei do que se trata. Quase que decorei o burocrático texto escrito pela remetente, tantas foram as vezes que abri esse mesmo subject nos últimos dois anos.
O äääääääääääääää perdeu a graça. O chaenchinichua dito pela máquina em chinês perdeu totalmente a graça.
Hesito um pouco e clico para ver se é o que penso que é. Afinal, pode ser um engano qualquer, um reply impensado, um forward estabanado.
Engano meu.
Está lá : Sr. André, favor retirar no xxo andar indicação de multa em seu nome.
Puta que pariu, penso claramente eu. KCT, grito alto em silêncio.
Empernido em terno, gravata e carro possante ainda consigo ser surpreendido pelo meu opositor e as sutilezas de suas estratégias, que agora me parecem inteligentes. Burro, na verdade sou eu.
Vou ao banheiro para jogar água no rosto.
Termino isso e então, vêm a revelação.
Eu simplesmente olho para o espelho e penso : meu, nesse assunto o inimigo é você. É você, André ....