sábado, 28 de maio de 2011

Bicicletas do Tocantins

Eu tenho um tio chamado Sérgio Pires Correia.
Raramente tenho notícias dele, porque geralmente elas são notícias ruins e eu evito perguntar sobre ele por essa razão principal.
Desde muito cedo, ele desviou para a criminalidade e hoje, com mais de 50 anos de idade, é um fantasma que anda. Se é que ainda anda.
A última vez que eu o vi, alguns anos atrás, ele deveria pesar menos de 50kg.
Estava com aspecto amarelado e claramente doente, respirando com muita dificuldade.
Isso é muito chocante porque ele foi um jovem belo e extremamente alegre nas fotos antigas que ficam escondidas na estante da minha mãe.
São fotos de 1979, 1980, 1981 ou até mais antigas.
Mostram ele, minha mãe e outros familiares no sítio em que meus avós residiam, no interior de SP. E a felicidade presente nessas fotos, captada tantos anos atrás, ainda é clara, lúcida e cativante, mesmo contida no papel amarelado pelo tempo.
Andei refletindo sobre o que deu errado na vida dele.
As versões dos meus parentes são divergentes, acho que traídas pelo tempo.
Uns, me disseram que ele se envolveu com drogas e acabou preso carregando maconha e entrou no círculo do vício em entorpecentes que selou sua vida.
Outros, me disseram que ele tinha um bom emprego, era muito inteligente e começou a roubar para alimentar corrupção de alguns policiais que não vou citar aqui, chantageado para manter-se fora da prisão e perto das drogas que adorava.
Não vou citar os tais policiais porque anos atrás eles já foram citados em jornais campineiros, como líderes de esquemas cabeludíssimos que eu não compreendo direito, porque sou um cidadão honesto.
Alguns deles foram até presos, o que é irônico. Prender sujeitos que tinham a prerrogativa que a lei lhes dava para fazer isso, o tal monopólio do uso da força concedido ao Estado para o bem comum. Pelo jeito, o bem comum era para o enriquecimento deles.
O que é convergente nos relatos sobre meu tio é que ele sucumbiu ao desejo de bebidas e alucinógenos em geral, e isso arruinou sua existência.
Uma das memórias mais nítidas da minha infância foi o dia em que visitei ele na cadeia pública do bairro São Bernardo ( aqui em Campinas ) e vi o talento que ele tinha para trabalhos manuais com madeira, aço e outros itens.
Ele havia feito algumas miniaturas e recordo que passou uma tarde muito feliz com o sobrinho, que dizem, era seu preferido.
Eu recordo que fui embora feliz, sem noção do que era aquele lugar onde ele estava.
Minha inocência ainda permitia que eu esperasse pelo presente de Noel e pelos Ovos de Páscoa trazidos por coelhos. Nem uma coisa e nem a outra são verdadeiras, a maioria de nós já sabe.
E tampouco aquele ambiente era leve, feliz e camarada como naquele dia de visita.
Em ambientes como aquele, longe das visitas familiares, o jovem da foto definhou e tornou-se irreconhecível. Tornou-se muito mais um corpo cheio de morte e com ausência de vida. Creio que ausência de razão para a vida.
Sua última transgressão foi o roubo de uma bicicleta velha, ano passado, no estado do Tocantins. Foi detido em fuga e resistindo a prisão com o objeto do alegado furto.
A cena relatada de forma mambembe e destacada pelo jornal local causou uma imagem esquisita quando eu tentei imaginá-la. Como seria possível a fuga daquele corpo doente e que mal respira, pedalando ardentemente um quadro enferrujado com 2 rodas ( não, não era uma bicicleta com 18 marchas ou com design aprovado pelo Lance Armstrong ) contra um potente SUV da Polícia do Tocantins e seus 3 ocupantes treinados, armados e bem alimentados ?
Conclui que tenho medo da imprensa também. Por isso, jamais tentarei ser político.
Em 16 de Dezembro de 2010, uma sentença pomposa que pesquisei no Google trancafiou o "sujeito perigoso e procurado pela justiça" sem direito a apelação débil e burocrática feita pelo defensor público, que alegou a estória previamente relatada no jornal que noticiou a tentativa de fuga spielbergiana do meu tio : que o objeto estava abandonado e ele simplesmente o pegou na rua. Obviamente, não colou.
Fiquei com pena dele, mais uma vez. Sua vida tornou-se uma sucessão de desgraças com raiz em apenas uma : desejar consumir drogas de todo tipo. Estava embriagado por álcool quando foi preso.
Não consigo deixar de pensar que anos depois, curiosamente no mesmo bairro do São Bernardo e menos de 1,5km distante da cadeia pública, em comecei uma trajetória de patrulheiro bem sucedido ( nome elegante que encontraram para office-boy mirim ) e muitos anos depois, eu poderia ter comprado umas 100 bicicletas para ele pedalar por aí, sem transgredir nada.
Abandonei o site, desgostoso com o resultado da pesquisa que fiz.
Como sobrinho, eu sou incapaz de devolver ao meu tio transgressor um presente equivalente ao brinquedo mágico que ele me deu, feito de palitos colados que formavam uma pequena casa e que fiquei dias examinando para entender como ele tinha feito aquilo com tanta perfeição.
Porque ele não deu certo, é uma dos grandes mistérios que eu nunca vou compreender.
Ele seria um grande engenheiro. Eu o imagino assim, quero que seja assim.